A DIFÍCIL ARTE DE CASAR A LETRA COM A MÚSICA


CARLOS SIDER


São coisas que pouca gente observa, mas há certas melodias que se casam tão bem com suas letras que uma praticamente não existe sem a outra. Pode ser questão de costume, pode ser questão de técnica, pode ser que o clima que a melodia dá valoriza a letra, e vice-versa. Enfim, é tudo isso e mais um pouco.
Tentar explicar isso, ou melhor, tentar equacionar tudo isso é como dizer que basta seguir algumas regras que qualquer casamento pode ser perfeito. E falo de casamento mesmo, homem e mulher deixando pai e mãe e constituindo um novo lar. O que faz com que um casamento dê certo?
O que faz com que uma música se case bem com sua letra?
Tenho sempre comigo alguns conceitos, que me ajudam na hora da necessidade, e diante do desafio de ser alguém que tenta escrever e compor.
É um casamento entre a letra e a música
E um bom casamento é aquele onde os indivíduos deixam de ser filho e filha, homem e mulher, e tornam-se ambos uma só carne. Inseparáveis. Assim é bom que seja com uma letra e uma música. Um nem precisa dizer o que quer, que o outro já entendeu. Um segue o outro o tempo todo. Se a melodia dá um clima de desfecho, a letra vai junto. Se é hora de falar sério, a música respeita. Se é hora de pular, a letra salta na frente.
Exemplos? Vamos a alguns clássicos da MPB
(Águas de Março, Tom Jobim)
é pau, é pedra, é o fim do caminho
É o resto do toco, é um pouco sozinho
é o caco de vidro, é a vida, é o sol,
É a noite, é a morte, é o laço, é o anzol 


(e indo mais para o meio da canção)

É o projeto da casa, é o corpo na cama,
é o carro enguiçado, é a lama, é a lama
É um passo, uma ponte, é um sapo, é uma rã,
é um resto de mato na luz da manhã
São as águas de março fechando o verão
é a promessa de vida no teu coração
A melodia obedece a um padrão descritiva, falando do fim do verão, uma época de chuvas e cheia de rios, enchentes, etc. E o que faz a letra? Fica o tempo todo descrevendo o ambiente, em uma pulsação poética onde as palavras parecem pingar como a chuva. A letra quase que faz a gente sentir o cheiro de terra molhada, ouvir o som da chuva. Coisa de mestre.
Outra?
Toada (Zé Renato, Cláudio Nucci e Juca)
Vem morena ouvir comigo essa cantiga
Sair por essa vida aventureira
Tanta toada eu trago na viola
Prá ver você mais feliz
Escuta o trem de ferro alegre a cantar
Na reta da chegada prá descansar
No coração sereno da toada, bem querer
Tanta saudade eu já senti, morena
Mas foi coisa tão bonita
Da vida, nunca vou me arrepender
Morena, ouve comigo essa cantiga
Sair por essa vida aventureira
Tanta toada eu trago na viola
Prá ver você mais feliz
Uma letra dessas jamais poderia ser um funk ou um rock. É uma toada melódica, chorada, sentida, que dá todo o respaldo para o que o fulano quer dizer pra sua morena.
Quem se casa com quem?
A letra com a música. Não é o letrista com o compositor. O letrista e o compositor estão mais para os sogros e pais. Ajudam, trabalham, suam e investem, mas não vão morar junto, não.
Antes de se casar, melhor sentir qual tipo de jogo vai ser
Ninguém casa sem antes saber com quem (pelo menos na nossa cultura ocidental sem casamentos arranjados). Um bom namoro é sempre bom.
Em minha experiência com composição tenho sido muito mais letrista do que compositor (só a música). E geralmente quando faço a música também faço a letra. Por conta disso, uma coisa que sempre gosto de fazer é receber a melodia já composta e ficar ouvindo, ouvindo, ouvindo, ouvindo, até cansar. É bem eficiente para sentir que tipo de clima a melodia pode prover para quem a ouve. Se ela te deixa pra cima, a letra terá que vir junto. Se ela te leva a pensar, a sossegar, a letra aproveita. Tenho casos de músicas que, de tanto ouvir, a letra começou a sair sozinha, quase que “cantada” pela própria melodia.
É certo que nem todos os autores seguem o mesmo tipo de sequencia, mas uma coisa é certa. Todo bom casamento precisa de uma grande dose de esforço e uma grande dose de arte.
Nenhum casamento nasce feito – mas começa de um compromisso em fazer certo, e bem feito
Melodias e letras são mutáveis, e podem curvar-se uma à outra para privilegiar o produto final.
Mas lamento notar uma coisa no universo das composições. Parece que há, em certos casos, um compromisso de fazer rápido e mais, mas não bem feito. Resultado? Uma montanha de músicas falando sempre a mesma coisa. As melodias mudam, mas o assunto...
É muito comum ver, em igrejas, gente que compõe. São músicos, artistas, que tem técnica para compor, mas parece que tem pouco para falar. Aí, para não perder a “música legal” que fizeram, começam a ver se não dá pra encaixar um salmo, ou um versículo, ou “uns aleluias”, uns “santo, santo, santo”, enfim, clichês em geral. Assim nascem algumas barbaridades.
Respeitando um ao outro, e fazendo valer o compromisso
Sempre há jeito. Sempre há soluções melhores do que desistir. Toda melodia merece uma letra que presta, e toda letra que presta merece uma melodia que a carregue adiante.
Não é assim com casamento? Nem todo dia há paixão. Também há supermercado e fraldas sujas. Mas o compromisso assumido deve valer para a vida toda.
Composição? Esqueça o romantismo. O letrista é um poeta só na idéia que se faz dele, pois na prática tanto o poeta como o letrista suam a camisa para terminar a obra. Toda composição é, enfim, 1% de inspiração e 99% (ou mais) de transpiração.
Regras? Ora, se os grandes artistas só fossem seguir regras, o que seriam das obras primas?
Casar uma letra com uma música é muito mais sentimento do que técnica. Voltando ao exemplo do Tom Jobim lá do início, tenho a impressão que uma letra como aquela só se faz cantando, tocando, rabiscando, alterando, testando, experimentando, mexendo aqui e alí, até a hora em que o autor “sente” que está bom. Não pergunte a ele o que é, mas confie que ele sabe.
Mas que elas existem, existem
Todo compositor tem uma lição de casa para fazer. Quem compõe música tem que ouvir muito mais do que compor. E quem escreve letras, tem que ler muito mais do que escrever (eu me arrisco a dizer que deve-se ler 10 vezes mais do que se escreve). Como bem se diz: “quem pouco lê, pouco entende, pouco fala, pouco vê”
Quem escreve tem que saber o idioma em que escreve. Quem compõe precisa ter um mínimo de conhecimento musical para saber se expressar. Enfim, há arte, mas toda arte requer um grande volume de esforço. Aos que pensam que compor é coisa simples digo que “os vagabundos que me perdoem, mas suor é fundamental”.
O que faz um casamento dar certo?
Sei lá. Sou casado, bem casado, e tenho um casamento que tenho como certo e abençoado há 22 anos. E fico feliz que esta não é só minha opinião, mas a de minha esposa e de nossos amigos.
O que fez dar certo? O que está fazendo dar certo? Deus. Seguir o que Deus manda, e acertar as arestas que ficam agudas quando a gente sai fora do trilho.
Na composição, e falando agora especialmente da composição de músicas para Deus e a respeito de Deus, por que não considerar que Ele é o melhor caminho para buscar algo que realmente dê certo?

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